_ Hoje é dia de Carmelita?
_ Sim! Hoje você tem terapia. Respondeu a mãe.
_ Tá; vou me arrumar.
Ele tem só 4 aninhos, e um caminhão de inteligência e espírito independente. Sozinho sabe reconhecer o dia da semana que vai ao meu consultório e se arruma sem pedir ajuda da mãe. Às vezes chega com um visual bem estranho, mas quem se importa? Vamos chamar isso de “licença para construção do autossuporte”. A mãe, sabiamente, respeita esse anseio de autorrealização, mas impõe limites quando necessário.
Ontem, recebi dele um elogio enviesado:
_ Ainda bem que hoje era dia de Carmelita; senão eu não ia jogar esse jogo muito legal! Comentou, demonstrando estar adorando a atividade com um jogo didático. Claro que retribui rindo solto e comentando: “Ah,você é um fofo!” Ao que ele respondeu:
_ Minha mãe fala isso toda hora, que eu sou um fofo e engraçado! Rimos juntos.
Ele não diz “hoje é dia de terapia”, como outras crianças; ele categoriza o evento como”dia de Carmelita”. Como às vezes sou muito dura com ele e ele próprio sabe das condutas inadequadas (ele é o que chamo de TODizinho, isto é, tem Transtorno Opositor Desafiador, TOD), possivelmente, ao se referir à ida dele à terapia como “Dia de Carmelita” ele esteja, inconscientemente, minimizando a própria necessidade de fazer terapia.
Não, isso não é psicologização exagerada: crianças com TOD, via de regra, têm inteligência acima da média, anseio de perfeição e negação dos próprios defeitos (inconsciente, claro), além de uma propensão para transgredir, quebrar as regras, e para manipular adultos de modo a fazerem valer a própria vontade (vontade impositiva e egoísta é algo que sobra neles); sabem usar a inteligência elevada em defesa própria. Mas, também via de regra, têm sentimentos amorosos (digo apenas “coração bom), desejam fazer a coisa certa e serem aceitos e queridos.
Outra paciente, de sete anos à época e com queixa similar, sonhava em ganhar na escola o “Certificado de Alma Boa”, uma estratégia pedagógica adotada para incentivar nos alunos boas condutas. Achei a ideia muito interessante. Essa menininha batia nos colegas, fazia birras ao ser contrariada (baixa tolerância à frustração), entre outros “desvios comportamentais”. Ela se ressentia ao ver outras crianças serem agraciadas com o certificado e ela, não! Em terapia, trabalhamos as disfuncionalidades comportamentais e outras condutas, quase sempre desrespeitosas em relação aos direitos dos outros. Um dia ela ganhou o tal certificado. Chegou à sessão radiante para me contar sobre a conquista! Esse e outros episódios confirmam minhas suspeitas de que, internamente, eles reagem mal e por impulso, mas gostariam de fazer diferente.
Outro todizinho me disse certo dia: “tia, eu entendi o que acontece comigo: tem um vulcão dentro de mim e às vezes ele entra em erupção”. Brilhante analogia! Fiquei estática, admirando a percepção dele, que também tinha só quatro anos de idade. Este caso, havia o TOD associado ao espectro do autismo leve. Foi muito enriquecedor trabalhar com ele! Somado à inteligência, o sorriso iluminado como raios de sol, ele ainda tinha uma “pegada sedutora”. Dizia sempre: “primeiro as damas”, ao nos aproximarmos de uma porta. Como não se encantar? A vigilância quanto ao risco de contratransferência é permanente!
Não é fácil ser pais, professores nem terapeuta deles. Mas, particularmente, gosto muito. Tenho tido sucesso em ajudá-los e isso me proporciona elevado sentimento de realização profissional. Como manejar? Bem, isso já é um segredo profissional! Brincadeira! A chave, basicamente, está nas clarificações que os convença a enxergar sentido nas regras, nas orientações dadas aos pais no sentido de ele saberem impor limites e frustrá-los com senso de justiça e retidão, isto é, a terem “autoridade parental”( não autoritarismo arbitrário). Ao mesmo tempo, há que se temperar isso com muito amor, em casa e no consultório. E quanto antes esse trabalho for feito, maiores os êxitos. “É de pequeno que se torce o pepino”, diziam nossos avós, com toda razão.
Autistas e TODs são os meus encantos e também meus “professores”. Como não amá-los?